Tudo o que restou quando Fábio foi embora, foi a lembrança.
Às vezes a saudade decidia retornar, mas eu evitava. Seu cheiro inundava a sala, eu corria para alguma arca para me abrigar: ia para o quarto, deitava sobre a cama, e lembrava que ali possuía a maior parte de nossa história, tudo o que havíamos sido e significado um para o outro. Num passado (ter)remoto.
Suas palavras brotavam das manchas das paredes, manchando o meu corpo com seus tons daltônicos, me pichando como se eu fosse patrimônio e sua pichação um recado. Eu não entendi nenhuma de suas mensagens, mas fui pichado todas as vezes.
Então ele dizia que o meu corpo era o ‘mapa do mundo’. E eu respondia: que mundo sem graça eu devo ser. Ao que ele retrucava: é apenas nesse mundo que eu quero navegar.
E navegou.
Talvez a princípio ele não tenha descoberto que descobriu várias terras em mim, várias línguas, povos, crenças e desejos. Pelas linhas que formavam as minhas montanhas, desenhou cada linha férrea para conectar as partes mais distantes, se embrenhou nas florestas, preservou cada parte de minha natureza e depois sorriu por ter sido bandeirante de meu corpo. Depois sussurrava:
— Às vezes me sinto o Egito.
— Egito?
— Por que em meio a todo esse deserto de pessoas, eu tenho você, meu Nilo.
Aquilo era brega, ridículo, risível, mas, soava verdadeiro. E o meu mundo respondia com espasmos de prazer às suas explosões vulcânicas. O mundo tremia, caía. Maysa cantava ao fundo, e eu segurava em seu queixo com força, ríspido e inesperado, me aproximava com a voracidade de um tigre.
— Olhe pra mim.
Ele olhava. Repetia minha expressão e mordia os meus lábios como se pudesse arrancá-los para si e domá-los para sempre. O meu corpo respondia tremendo de frio, escorrendo suor, nos emaranhados de seus segredos eu divagava o meu eu. Pensando como poderia ser se ele fosse meu. E decidi que se ao menos não ocorresse, eu poderia sonhar que como replay, aquilo acontecia.
A cada dia.
Em seus braços era como acordar em um novo ponto do mundo. Onde a única referência eram seus olhos. E com o tempo eu passei a pedir que me pintasse, escrevesse em mim todos os seus gritos, me fizesse de registro de suas viagens, que primeiro fizesse revolução com o meu corpo, que derrubasse o meu muro de Berlim, que eu fosse o seu ensaio social.
E ensaiou.
Talvez a princípio ele não tenha considerado que eu valesse mais que um doutorado, mas, falávamos muitas línguas silenciosas dignas de qualquer estudo. Entreolhares ardentes que me davam febres momentâneas, seguidas de cama. Ele se formou em desvendar a minha geopolítica, rasgar a minha filosofia e recriar a minha metafísica. Ao fim do dia havia sobrado algo, não era eu. Mas, eu estava ali. Quando senti que ia embora, perguntei o porquê. Ele disse que não podia, definitivamente não podia fazer nada comigo, porque não tinha pudores.
— Pudores? Desconheço essa palavra.
O que são pudores senão uma classe gramatical das dores? Com Fábio eu não tinha, não havia como ter pudores. Então ele me mostrava como agarrar o mundo sem dó, devastar cada uma das estradas e passar por cima das casas, da natureza. Era uma colisão meteórica, uma chuva de estrelas. A minha terra por um instante não sobrevivia, respirava e retornava. Ele então cavalgava por cada lugar onde nunca estiveram os homens civilizados, puxava os cabelos dos índios com força, selava os lábios como quem promete e se dava por satisfeito.
Eu não.
O mundo ainda parecia sem graça demais. Restavam espaços em todos os cantos que não haviam sido preenchidos pelos seus rastros. Meu corpo pálido ainda necessitava de muita tinta, muita pichação, muito estudo. Ainda haviam cores a serem pintadas, rios a serem desviados, fronteiras a serem aniquiladas, impérios a serem destruídos, e ele sorria com a minha impaciência de querê-lo mais, como se não houvesse amanhã.
E não houve.
Então tive de viver no silêncio da lembrança e da memória, por ter sido arquivado, por não ter sido concluído. Eu poderia ter sido o seu melhor estudo, você buscou as fontes, pegou os materiais, utilizou os métodos, mas, não cientificou nada. Só contemplou como algo genuíno podia ser feito com a trilha de minha coluna. E eu implorava: eu não quero algo genuíno, eu desejo desesperadamente um clichê messiânico. Um homem para salvar-me, para se destacar de todos os outros; não uma aventura com parágrafos e fim.
Mas o início, não foi apenas criacionista. Bem, você estava lá de qualquer forma e eu evoluí, até que pudéssemos nos aproximar. Parecíamos duas pinturas distintas que rasgam as suas metades e são coladas uma na outra. O encontro renascentista e cubista, vagando pela tela um do outro, caçando os sinais, os rastros, as explicações de termos chegado ali. Então joguei seu telefone no sofá, você me jogou contra a parede e saímos de nossos quadros para formar uma única pintura.
Trágica.
Por que depois disso, eu não voltei a ser a pintura original. Faltava um pedaço e sobrava o seu. Seu gosto e seu rosto permaneciam pichados em parte da minha tela. Eu não era apenas modernista, era pós-pós-modernista! Esquecido de mim mesmo para viver cada um dos cacos jogados ao chão. Caçando meu reflexo em seus rastros, ao invés do espelho. Em uma única noite você pintou a obra e a destruiu.
Uma noite em mil.
Dessas onde mil ladrões não conseguem roubar o que você conseguiu. Não há palavra mágica, não há fórmula, não há segredo para entrar em mim. Só exijo que seja você mesmo, só exijo que tente me desvendar e me devorar. Eu não sou esfinge. Só um mundo despovoado, buscando novas pessoas para destruí-lo. Eu preciso ser consumido, eu busco ser consumido, por um amor que não dure menos que o infinito.
Mas, você é o agora.
Por isso não nos vemos há quatro anos. Você fez tudo aquilo que havia dito: levou consigo toda a minha mitologia. Tornou-se meus heróis, meus vilões, meus deuses imortais e a fórmula da felicidade. Quando pedem que eu fale sobre mim eu faço um resumo sobre você e como você foi a minha vida. Não pensei em morte, porque você me ensinou que o mundo é pequeno demais e logo iremos nos encontrar, desço as mãos em meu mundo e consigo encontrar o Egito, mas, logo chego em Madagascar. Eu te procuro em cada canto do meu corpo, meus dedos descobrem novas culturas, entre um gemido e outro, eu desisti da eternidade, passei a te buscar por uma noite, por que uma vida sem ti é pouco.
Mas, há muita saudade, confesso.
Saio de casa, busco refúgio no desconhecido, vejo mil rostos, mil histórias, mil lábios que eu poderia beijar, mil corpos que eu poderia descobrir, indivíduos que são coletivos, mas, que em quatro paredes são tão individuais. Vou a um prédio desconhecido com um encontro pré-marcado, mas, estou sem rumo, saindo de minha Europa para o novo mundo. Eu olho no espelho e vejo-te, te escrevo aqui no elevador. Para que ele eleve, eleve, eleve.
A dor.
A porta se abre e cambaleio para trás, vendo que é você. Esse conto misturou presente e passado, porque você meche com a minha psiquê. Eu entrei, vi os retratos, vi que sua casa não tinha marcas na parede como as que havíamos deixado na minha. Você diz: era uma vez nós dois. Ao que respondo: era para ser nós dois. E tudo o que restou foi a minha alma sozinha.
Nos abraçamos, nos beijamos, nos despimos do mundo. Por que em meio a saudade, havia o vestígio da felicidade. E parti para o paraíso, acompanhado de um sorriso, após viver no submundo.
Sobre o autor:
Yule Travalon é de Brumado, na Bahia, e reside em Campinas. Aos 20 anos já tem um estilo amadurecido e costuma trazer para seus textos temáticas relevantes, contantemente ligadas à homossexualidade, enchendo suas obras de sentimentos profundos e um ritmo quase que poético. Acompanhe a obra de Yule: http://yuletravalon.com.br/