Mundo líquido moderno, já ouvir falar? É assim que Zygmunt Bauman classifica o mundo contemporâneo. Conceito que ele cria ao analisar minuciosamente, e com perfeito estranhamento, as relações humanas mais simples e tudo que as envolve, desde as motivações mais básicas, e como elas foram afetadas pela “modernidade” industrial e capital (comercial) que permeia tudo hoje. “O mundo que chamo de ‘líquido’ porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo” (Bauman, 2011). Ele traz uma reflexão (muito necessária, diga-se de passagem) a respeito de como as mídias, tecnologias e sistemas de comércio moldam, praticamente direcionam, as interações inter-pessoais transformando-as em algo superficial e líquido, fugaz e efêmero.
“(…) somos menos pessoas ou personalidades cujas qualidades não repetíveis estão todas contidas em nossa singularidade ou peculiaridade, mas uma coleção desordenada de atributos vendáveis ou difíceis de vender.” (Bauman, 2011).
Em um de seus livros, 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, ele expõe as belezas e dificuldades da contradição que é viver na liquidez. Afinal, “viver é assumir riscos” (Bauman, 2011). A partir desta premissa básica, o autor pincela a vida cotidiana do homem contemporâneo através do viés da comunicação de massa, das relações superficiais estabelecidas através da internet e do sentimento de nunca estar só ou atingir esse estado, afinal a tecnologia nos cerca, mesmo que superficialmente, de companhias virtuais constantes, no entanto, muito distantes de nós na maioria das vezes.
O livro é uma coleção de cartas que foram enviadas para a revista La Repubblica delle Donne ao longo de quase dois anos. Essas cartas, que buscam explicar as relações humanas desde a explosão das redes sociais como facebook e twitter à sociedade de consumo, foram compiladas, editadas e cada uma delas constitui um capítulo da obra. Mas afinal por que o número quarenta e quatro? Bauman explica que, no conceito de Adam Mickiewicz, esse número representa o respeito e a esperança pela chegada da liberdade. E por que “modernidade líquida”, de onde veio e para onde caminha esse conceito?
Segundo Bauman:
“Uma das razões pelas quais passei a falar em “modernidade líquida” em vez de “pós-modernidade” (meus trabalhos mais recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, entre “pós-modernismo” e “pós-modernidade”. No meu vocabulário, “pós-modernidade” significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto que “pós-modernismo” se refere a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente da condição pós-moderna.
Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a ideia de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana e assume que todos os tipos de vida humana se equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer julgamentos e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo.
Mas sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna nas suas ambições e no seu “modus operandi” (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que se acha desprovida das antigas ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante.
É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem ilusões. Diferentemente da sociedade moderna anterior, a que eu chamo de modernidade sólida, que também estava sempre a desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sempre a ser permanentemente desmontado, mas sem perspectiva de nenhuma permanência.
Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades “auto-evidentes”. É verdade que a vida moderna foi desde o início “desenraizadora” e “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente “reenraizado”, agora as coisas todas – empregos, relacionamentos, know-hows etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis.
Como um exemplo dessa perspectiva, li, num dia desses, que um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir casas que permanecessem lindas “para sempre”. Ao ser questionado sobre o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até daqui a 20 anos! Isso é hoje “para sempre”, grande duração. O que me interessa é, portanto, tentar compreender quais as consequências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.
Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a terem um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como Sartre aconselhava, é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida. Se se pensa, por exemplo, nos dados levantados por Richard Sennett [sociólogo] – o tempo médio de emprego no vale do Silício [localizado na Califórnia, EUA, concentra um grande número de empresas de tecnologia e internet], por exemplo, é de oito meses, quem pode pensar num projeto de vida nessas circunstâncias?
Na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Renault ou Ford iria com toda probabilidade ter ali um longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem ideia do que poderá lhe acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana.”
Através de um olhar absolutamente contemporâneo, Bauman busca entender comportamentos, dicotomias e paradoxos desse novo paradigma social.
Utiliza-se da dialógica das cartas como forma de registro, traçando através delas uma interação com o leitor sobre a diacronia comportamental e de linguagem, caracterizado pelas mudanças das condições de vida, padrões de normalidade, de certo e errado, diferentes pontos de vista, conflito de gerações com ganho de quantidade e perda de qualidade em todos os âmbitos da vida.
Apesar de e devido à liquidez diária em que nossa vida emerge diariamente, Bauman faz questão de destacar que não há como viver baseando-se no acerto. Não há sucesso garantido, mas também não existirá progresso se nada for feito. Aceitar o mundo conforme se solidifica a nossa frente ou moldá-lo conforme nossos anseios e aspirações é uma escolha pessoal e intransponível que pode e deve ser feita.
Está absolutamente claro que vivemos em um mundo globalizado, onde, cada vez mais, as relações vem se tornando superficiais e descartáveis, as injustiças permeiam o aceitável e olhar para si é quase que impensável já que o tempo que nos sobra de vida é destinado a criar uma vida ideal online. Bauman tenta, em seus 44 artigos, resgatar a consciência das pessoas sobre essa superficialidade que vem tomando conta do nosso dia – a – dia, causar estranhamento e modificar esse quadro anormal de relações idealizadas e irreais através de uma reflexão esclarecedora. Cabe a nós leitores, colocarmos as mãos em nossas consciências e revermos nossos critérios de adoção de convivência conosco e com as pessoas ao nosso redor. Só assim, poderemos modificar esse quadro e passar a vivermos como seres humanos pensantes que somos, não máquinas programáveis e descartáveis.
Não há, portanto, como contestar as teorias de Bauman. Ele está imerso no universo em que automaticamente as novas e antigas gerações estão inseridas através da mensuração da proximidade e distância entre o presente e o passado recente.
Nosso presente, a Modernidade Líquida, é uma versão privatizada e individualizada da Modernidade. Só acreditamos ser capazes de transformar a nós mesmos para nos preparar para as inumeráveis transformações sociais que experimentamos cotidianamente.
Este modelo é a sua resposta a uma questão que angustia a muitos hoje: como voltar a lutar pelo bem comum reconhecendo, ao mesmo tempo, que existem múltiplas versões do bem e que o totalitarismo sempre ronda aqueles que querem impor sua versão aos outros? #ficadica 😉
Por Paula Moran