Hoje lançam-lhe olhares de menosprezo; outrora, piece de resistence. Esqueça os detratores: Mad tem um lugar maior na História do que lhe é reconhecida. Se atualmente é um título para adolescentes, num passado recente desempenhou papel fundamental no nascimento de um novo tipo de quadrinhos, recheados de crítica social, e com excelente apuro estético – tudo isso sem perder o nonsense e a liberdade de vista. Mad é História? Sem dúvida alguma.

Aurora

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Mais do que seus cartunistas e humoristas; falar da Mad é falar de William Gaines e de Harvey Kurtzmann.

Kurtzmann trabalhava na editora de Bill Gaines, a EC Comics – no início Educational Comics, especializada em histórias ilustradas da Bíblia; mais tarde, quando o pai de Gaines passou-lhe o controle, Entertainment Comics, focada em livros de sci-fi e horror (que tinha como carro-chefe o best-seller Tales from the Crypt). Era editor comissionado pelas vendas de seus títulos, dois ao todo, contra sete do outro editor, Al Feldstein, que era bem melhor sucedido.

Sem dinheiro, Kurtzmann procurou Gaines para um empréstimo. Conseguiu-o, mas com uma condição: que fosse usado para criar um novo título. Gaines lembrou dos esquetes humorísticos no portfolio de Kurtzmann, e naquela reunião decidiu-se criar uma revista que fizesse graça das outras revistas.

Enquanto Kurtzmann afirmou ter surgido com o nome sozinho, Gaines dizia que Mad pipocou durante um brainstorm com Feldstein. De uma maneira ou outra, em outubro de 1952 era lançada Tales Calculated to Drive You Mad, com arte de colaboradores regulares da EC como Jack Davis, Wally Wood e especialmente Bill Elder, cujo traço tornou-se marca registrada dos primeiros anos da publicação, quando era um livro bimestral. Seu preço: 10 centavos de dólar.

Desde o início, Mad era como nenhuma outra revista. Trazia um humor tosco, irreverente, agressivo; mas quase sempre inteligente, carregado de sátira e crítica social, e impecavelmente bem desenhado. A arte sempre foi uma preocupação maior na revista. Espaços em branco não eram bem-vindos; entupia-se os fundos de piadas visuais, gags, e referências ocultas. Kurtzmann teve papel central nessa primeira etapa. Além de escrever grande parte do material, criou o logo da revista, deu vida a Alfred E. Neuman e desenhou capas..

Apesar da proposta inovadora, Mad não foi um sucesso instantâneo. Mas Gaines adorou, e lhe deu fôlego (ou seja, dinheiro) para construir uma base de leitores – o que aconteceu em alguns meses. Já o número 4 esgotou rapidamente, trazendo uma paródia do sucesso maior da época: Superman, impiedosamente parodiado por Wood como Superduperman (ou, no Brasil, Superducahomem).

Sem Kurtzmann

willelder-anniefanny_brA sátira cresceu e estendeu-se; já na metade dos anos 50, Mad não fazia sátira apenas em cima das outras revistas, mas de qualquer aspecto da cultura pop americana. Em julho de 1955, no número 24, Gaines transformou o livro bimestral em uma revista; em parte por um desejo pessoal, mas também por ações da Comics Code Authority, órgão regulador que pressionava Mad por seu estilo subversivo. No ano seguinte, Gaines fechou a EC Comics e manteve apenas com seu título principal. Problemas de dinheiro e distribuição agravaram a publicação, e Kurtzmann decidiu saltar do barco.

Depois de perder na justiça a disputa pela posse do título, Kurtzmann vagou em projetos de vida curta, até acertar a mão na escrachada National Lampoon e na bem-sucedida tira Little Annie Fanny, ao lado de Bill Elder e publicada na Playboy de 1962 a 1988. (A tira pode ser lida no Brasil com o lançamento, este mês, de um álbum comemorativo aos 50 anos de Playboy; Little Annie Fanny veio em formato especial e traduzida como Aninha, Bonita e Gostosa. Delírios de tradução à parte, a mistura entre o traço rechonchudo de Elder e a ironia mordaz de Kurtzmann merece com louvores a leitura.)

Com a saída do antigo editor, Al Feldstein assumiu o cargo e lá permaneceu até 1984, enquanto a revista crescia em números e influência. Feldstein fez de Mad um sucesso total de vendas, sustentando-se quase inteiramente da venda em banca – já que não teve publicidade na maior parte de sua vida. Desde que assumiu o formato de revista, em 1955, até 2001, não se liam anúncios nas suas páginas. Parte de sua influência pode ser creditada ao fato de que anunciante algum interferia no conteúdo.

Auto-avacalhação

Os colaboradores de Mad sempre fizeram seu melhor para destruir a imagem da revista – ou, pelo menos, assumir uma postura de publicação sem valor. Isso ficou claro nas legendas ao lado do preço. Ao ser lançada em formato revista, custava 25 cents, e trazia ao lado: “Cheap” (tanto significando “baixo preço” como “sem valor, vagabundo”. Quando subiu para 30 cents, o texto passou a ser “Highway Robbery”. Em 1971, atingiu 40 cents, e teve frases como “Ouch!”, “Outrageous”, “No Laughing Matter” e “Cheap! (Considering)”.
No Brasil, essas piadinhas também foram levadas a cabo – principalmente à época de Sarney e Collor, quando os reajustes eram quase mensais. Além disso, desde o seu lançamento por aqui Ota já publicava que Mad era uma ECA e que não servia nem como papel higiênico – associação que se mantém em uso até hoje.

Quebrando tudo

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Infelizmente – ou seria felizmente? – nem todo mundo entendeu o espírito livre (demais) da revista. Mad chegou a ser proibida pelo governo e investigada pelo FBI, mais de uma vez, por incitar a delinqüência juvenil. Professores recolhiam cópias vistas com alunos. Ao menos na premissa do humor, Mad foi uma espécie de pré-Hustler: nela, nada era sagrado ou tabu. O motto de Gaines era “Não leve nada a sério demais”. Apolítico e ateísta, fazia questão de bater forte em política e religião. (Um exemplo: na paródia de Ghostbusters II, um padre se aproxima de Bill Murray e diz: “No clero, somos contra as pessoas acreditarem em nonsense fantástico ou superstições sobrenaturais”, ao que Murray replica: “Claro. Vocês querem que as pessoas acreditem em coisas quotidianas como a Arca de Noé e serpentes falantes com maçãs!”)

Ao contrário dos outros comic books, Mad não era lida pelo público usual – adolescentes –, mas por adultos. Entre os leitores, nomes fundamentais para a história dos quadrinhos alternativos, como Robert Crumb, Jay Lynch e Gilbert Shelton (de The Fabulous Furry Freak Brothers) – todos eles publicados

mais tarde por Kurtzmann na revista Help! (que teve vida curta, e rodou no início dos 60). Parte disso pode ser explicado porque a revista ocupou um lugar vital na sátira política entre 1950 e 1970, num país onde a paranóia da Guerra Fria e da Caça às Bruxas ocupavam grande parte do cotidiano das pessoas.

Em 1961, Gaines vendeu a revista – seu contador lhe disse que não poderia pagar os impostos sobre o dinheiro que a revista estava arrecadando. Hoje é propriedade da AOL Time Warner, sob a bandeira DC Comics. Apesar do negócio, Gaines continuou à frente das operações da revista até 1992, ano de sua morte – em parte pelo bom relacionamento que mantinha com colaboradores

regulares como Al Jaffee, Dave Berg, Don Martin e Antonio Prohias, que ficaram na revista por décadas. Sua vida está ganhando uma cinebiografia; com o título provisório de Mad Man, o longa está sendo rodado, com roteiro adaptado a partir da biografia de Steven Otfinoski. O filme vai cobrir o início da revista, mostrando a vida de Gaines do final dos anos 40 até a década de 50.

Por esse lado de cá

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Mad ganhou versões – e imitações – em 19 países. No Brasil, começou a ser publicada no início dos anos 70, pela extinta editora Vecchi. Desde já com o eterno Otacílio D’Assunção, o Ota, na editoria, a Mad atingiu seu apogeu no final desta década, quando começou a produzir material nacional e mesclá-lo às traduções e adaptações. Mais tarde, com a quebra da Vecchi, acabou sendo comprada pela Record, e hoje está sendo editada pela Mythos.

Tal como nos EUA, com as mortes de Feldstein e Gaines, a Mad brasileira teve seu direcionamento voltado ao público teenager, deixando, tanto lá como aqui, uma lacuna; a da crítica social inteligente, hilária e acessível. Então, como no título do livro que mais vendeu de Sergio Aragonés: VIVA MAD!

Por Tiago Casagrande