Filha de um talentoso comerciante, Elis Regina já teve um nome estratégico para seu sucesso. O pai já via a cantora na filha e optou por acompanhar “Regina” do no nome por questão de logística e marketing. Então, Elis Regina Carvalho Costa. Nascida em Porto Alegre, no dia 17 de março de 1945. Criou-se à beira do Guaíba, no Bairro Navegantes e pouco depois na Vila IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários). Projetada pelo governo Vargas, a vila seguia na configuração da época: prédios baixos, com poucos apartamentos, cercados de toda a infraestrutura para acolherer os operários que ali moravam em um clima comunitário. Uma infância simples e estrábica como tantas outras.
Em seus 34 anos de vida, Elis Regina gravou 27 LPs, 14 compactos simples e seis duplos. Mais de quatro milhões de cópias vendidas. Foi a primeira cantora a registrar sua voz como instrumento na Ordem dos Músicos do Brasil. Esta é um pouco da história que todos conhecemos de Elis, também conhecida como Pimentinha, Élis-Coptero ou somente Élis, por alguns. Mas a vivência política é um lado pouco conhecido de cantora. Sua luta.
Participou de uma série de movimentos de renovação política e cultural no Brasil. Foi umas das principais vozes ativas na campanha pela Anistia de exilados brasileiros. Criticou muitas vezes a ditadura brasileira, nos chamados Anos de Chumbo, quando muitos músicos e artistas foram perseguidos e exilados. Tanto em declarações ou nas canções que interpretava, como O bêbado e o equilibrista, a qual vibrou mais tarde como hino da Anistia onde coroou a volta de vários artistas do exílio, a partir de 1979. Filiou-se ao PT (Partido dos Trabalhadores), em 1981, um ano após o partido ser fundado, considerado como um dos maiores e mais importantes movimentos de esquerda da América do Sul. A fama e prestígio de Elis lhe mantiveram fora da prisão. Sorte, talento e prestígio: a fórmula perfeita do sucesso.
Em uma época onde a sociedade brasileira dividia-se em “militares” e “civis”, a maior rixa de Elis Regina com o “lado de lá” veio com uma entrevista à imprensa internacional, em 1969, na Holanda, onde declarou que o Brasil era uma terra “governada por gorilas”. Estava de saco cheio com a falta de liberdade no país. A partir disto, Elis passou a ser mais do que uma grande pedra no sapato da ditadura. A cantora teve a honra de ser documentada entre os arquivos do exército brasileiro.
– Obviamente a macacada ficou sabendo: a embaixada brasileira mandou a matéria pra ninguém menos que o terrível e temível SNI, Serviço Nacional de Informações. A primeira ordem foi para prendê-la logo que pusesse os pés em terras brasileiras. Acabam mudando de ideia ao investigar e comprovar que – ao menos até ali – ela não tinha nenhuma participação política efetiva no Brasil. Só tinha falado demais – conta o escritor, músico e produtor gaúcho, Arthur de Faria.
Datado em 01 de dezembro de 1971, o documento do Ministério do Exército, intitulado com o assunto “Elis Regina”, consiste em duas folhas de informações em relação a cantora e outras duas folhas em que ela afirma não ter ligações com grupos de oposição política em uma carta escrita à mão. Este “intimasso” em Elis viria a lhe incomodar por anos a fio, com os gorilas cercando seus passos, conversas, contatos e inclusive suas transações bancárias. Segundo Aluizio Palmar, cientista social e jornalista, que atuou severamente em grupos de esquerda durante a ditadura, a embaixada brasileira teria emitido a cópia da declaração de Elis Regina afirmando que o Brasil era “governado por gorilas”. Tal fato, levou a cantora a esclarecer-se em um interrogatório ao retornar ao Brasil.
– Tal fato mostra claramente como haviam espiões infiltrados em todos os lugares durante a ditadura militar. Tanto informações pessoais, como o retraimento de Elis, quanto seu depoimento para a imprensa internacional foram escritos e apurados detalhadamente – explica Aluizio Palmar.
Chamada ao Centro de Relação Públicas do Exército Brasileiro para dar explicações, em 1971, de acordo com depoimentos da própria Elis à escritora Regina Echeveria, autora do livro “O furacão Elis”, foi em razão, em suma, deste caso, que ela teria sido obrigada a cantar nas Olimpíadas do Exército de 1972, o que de certo modo, como efeito apaziguador, de fato o fez.
Entre algumas informações que constam no documento “Elis Regina” do Exército Brasileiro:
“ – É muito afeita a gravar músicas de protesto, inclusive ligadas ao movimento do Poder Negro norte-americano, apesar de não demonstrar ligação com o mesmo;
– Cumpre seus contratos e compromissos corretamente, aceitando programas não remunerados, quando para fins filantrópicos, ou solicitados por órgãos públicos.
– Nos anos de 1966-1967 atuou ao lado de alguns cantores de esquerda considerados subversivos após as agitações de 1968, destacando-se, entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e Edu Lobo. Faziam parte do “Grupo Paulo Machado de Carvalho”, da TV Record, Canal 7, de São Paulo e da Rádio Jovem Pan. Na época, anos de 1966/67, esse grupo foi considerado de orientação filo-comunista;”
Já em sua carta, Elis afirma que o fato da entrevista na Holanda foi criado por jornalistas sensacionalistas. Explicou que suas declarações foram deturpadas brutalmente por eles. Mas após isto, os milicos não tiraram mais os olhos dela:
– Queria deixar registrado que, de algum tempo para cá, não presto declarações a órgãos de imprensa, a não ser por escrito, ficando comigo as cópias das entrevistas – explica a cantora no documento enviado ao Exército Brasileiro.
A verdade é a que ditadura engasgava Elis, mas para seu próprio bem, sobtudo no Brasil, manteve-se calada. O medo não era só dela. Perseguições e ameaças eram mais do que repressão moral e cultural, era uma espécie de hobbie entre os militares.
Foram dois os fatos que trucidaram a moral de Elis perante sua luta com seus companheiros de esquerda. Um foi a gravação de uma chamada veiculada em todas as emissoras de TVs, a partir de abril de 1972, que na na época contava com a chefia do Governo Federal de ninguém menos do que Garrastazu Médici, o mais sanguinolento dos militares-presidentes, onde a cantora fazia um chamado ao povo para cantar o Hino Nacional no dia 7 de setembro de 1972. O vídeo promovia a Olimpíada do Exército, em filmes produzidos pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República. O exibicionismo dos atletas milicos era claro. Mostrando todo o preparo e perspicácia militar que o governo oferecia para proteger os civis de qualquer coisa que afetasse os “cidadãos de bem”.
Mais tarde, o segundo ato, foi o fatídico dia, em setembro, que Elis subiu ao palco para cantar o Hino Nacional, toda vestida de preto, em Belo Horizonte, no Estádio Mineirão, no mesmo ano.
– A conta veio, altíssima, em 1972, período mais negro da ditadura. Foi a maior humilhação de sua vida: gentilmente convidada a reger um coral de artistas que cantariam o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército, em plenos civismos de setembro, Elis apareceu de casaca e tudo na frente de milhões de tele-espectadores. Pra dizer não era preciso ter muito, mas muito peito. E, pela primeira e talvez única vez na vida, ela amarelou. É certo que, até então, ela não era exatamente uma artista polizada. Mas, por outro lado, não era uma simpatizante ou inocente útil como Roberto Carlos ou Antônio Carlos & Jocaf – explica Arthur de Faria.
Ao levar Elis Regina ao palco na abertura das Olimpíadas do Exército Brasileiro, para cantar o Hino Brasileiro, os militares fizeram a tentativa de causar a morte moral da cantora. Chamada de traidora de imediato e com queda moral amplamente disseminada pelo meio musical. Passou a ser insultada por diversos formadores de opinião e jornalistas dos “Anos de Chumbo”.
– Elis: Eu cantei nessas Olimpíadas e o pessoal da Globo todo também participou. Todos foram obrigados a fazer. E você vai dizer que não? Eu tinha exemplos muito recentes de pessoas que disseram ão e se lascaracam, então eu disse sim. Quando apareceu isso eu procurei o Aldir Blanc e disse: Poxa, que sacanagem. E ele falou: Você cedeu como cederam o 90 milhões. Agora, é fácil acusar. Quero saber o que quem me critica estava fazendo quando eu estava cantando nas Olimpíadas. E tem mais, numa situação excepcional, idêntica, eu não sei se faria de novo. Porque eu morro de medo. Faço todos os espetáculos me borrando de medo todos os dias. Faço, mas com medo. E se mandar parar eu paro, porque medo eu tenho – disse a cantora em um entrevista concedida a VEJA em 25/10/1978.
— Na entrevista para a Veja, perguntei a Elis uma coisa que me intrigava: quais eram as imposições de cima para baixo, de que tanto reclamava? Ela disse: “EU falo isso porque, quando pintei, tinha vinte e nem me permitiram, em determinado momento, fazer as estripulias normais de uma adolescente. Já começaram jogando uma sobrecarga violentíssima que talvez eu tivesse condições de arcar aos 33. Foi uma violência, mas, se foi cometida, eu permiti. E as diversas fases pelas quais fui passando determinaram-se, evidentemente, por um processo de amadurecimento e também por sufocos momentâneos” — conta a autora da biografia Furacão Elis, Regina Echeverria.
O clima de decepção moral com Elis ainda foi visto no “Festival Phono 73”, em São Paulo, com shows das grandes estrelas da gravadora Phillips, nomes como Caetano Veloso e Oldair José, por exemplo. Elis Regina entrou com um ar de tensão no palco e com o rosto fechado.
– Foi recebida com extrema frieza. Entre alguns aplausos pouco entusiasmados, muitos assovios e o grito de uma voz raivosa que se ouviu pelos quatro cantos: “Vai cantar na Olimpíada do Exército”, promovendo assim mais vaias do que aplausos pra cantora. Foi quando uma voz vinda do palco pôs ordem na casa: “Respeitem a maior cantora do Brasil”. Quem lhe prestou socorro foi o amigo Caetano Veloso – relembra Abílio Neto, crítico e pesquisador musical.
Este momento foi crucial na carreira de Elis. A cabeça já zonza por toda este vai e vem de “civis” e “militares” mudou ainda mais o seu ver sobre as coisas. Como resultado, uma reviravolta na vida e estética da cantora. Elis Regina partiu pro ataque. Foi a luta.
– A partir disso, Elis Regina deixou de ser a queridinha do samba-jazz meio Broadway. Iria virar uma cantora cool e uma mulher engajada, com um reperótiro definitivamente MPBista e de esquerda – comenta Arthur de Faria.