David Lynch é um cineasta cujos filmes dificilmente se adequam a resumidas sinopses, especialmente aquelas encontradas nas fitas disponíveis em locadoras. É mais ou menos assim: você sai de casa para alugar um filme de Lynch, lê o pequeno texto e pensa, “esse dever ser bacana”. Prepare-se, pois o que você leu terá pouca ou nenhuma semelhança com o que o filme realmente é.
Lynch sabe combinar criatividade e ousadia como ninguém e, mesmo que seus filmes sejam tachados de estranhos e ininteligíveis, não há como negar que ele é um dos diretores mais talentosos do cinema americano. Como poucos, desenvolveu um estilo único e admirado. Para quem não o conhece, vale à pena assistir a seu último trabalho, Mulholland Drive, que deve estrear brevemente nos cinemas brasileiros. O filme foi intensamente aplaudido no Festival do Rio de 2001, assim como “A História Real”, exibido recentemente.
Falar sobre o universo lynchiano é falar sobre nossos pensamentos obscuros. É catucar o bizarro que habita todos nós, mesmo que escondido sob camadas de comportamentos aceitáveis pela sociedade. É caminhar por ambientes e situações que mais parecem pesadelos. Para assistir a um filme de Lynch, o espectador deve estar consciente de que vai penetrar em um mundo obscuro e surreal. E que sua reação a isso é fator primordial para tirar uma conclusão de suas obras. Se é que isso seja possível…
Quem é David Lynch?
David Lynch é um homem verdadeiramente multifacetário. Ele divide seu tempo entre várias atividades artísticas como o cinema – área que o celebrizou -, a escrita, a pintura, a escultura, os cartoons, a fotografia, a produção televisiva e a composição musical. Conjugando de forma inteligente as exigências do universo cultural mainstream com tendências artísticas experimentais, Lynch tornou-se um dos mais respeitados cineastas da nossa era, avançando com uma visão de mundo caracterizada pelo seu original obscurantismo e pela utilização de um sentido cômico tão bizarro quanto amargo que, somados, formam um conjunto de estranha beleza. Conseguiu a fama e o respeito do público e da crítica, contribuindo para uma alteração profunda dos gostos e ideologias do cinema norte-americano.
Lynch nasceu em 20 de Janeiro de 1946 em Missoula, uma pequena cidade do estado americano de Montana. Criado num ambiente tipicamente do interior, sua primeira aspiração profissional esteve ligada ao design gráfico e, por conta disso, iniciou seus estudos na Escola Corcoran de Artes em Washington, local onde foi pupilo do pintor expressionista Oskar. Por volta de 1966, ingressou na Academia de Belas Artes da Pennsylvania, escola onde fez as suas primeiras experiências como cineasta. O ambiente violento e decadente em que viveu durante os anos que passou nesta escola tiveram um efeito duradouro na formação de Lynch, conferindo-lhe uma estranha obsessão pela exploração do lado mais sombrio da experiência humana. Seu primeiro curta-metragem, “Six men getting sick”, é o reflexo dessas influências, definida por ele como “57 segundos de desenvolvimento e fogosidade e 3 segundos de vômito”. Com “The Alphabet”, Lynch obteve o reconhecimento dos críticos e foi presenteado com uma bolsa de estudos do American Film Institute. Neste período, fez seu terceiro curta-metragem, “The grandmother”.
Em 1972, ele se dedicou a seu primeiro longa-metragem, do qual fez praticamente tudo: argumento, realização, efeitos especiais, som, montagem e produção. “Eraserhead” tornou-se desde seu lançamento um filme cult aclamado pela crítica e transformou-se num ícone do cinema de vanguarda. “Eraserhead” despertou a atenção de muita gente em Hollywood, entre eles Mel Brooks, que foi produtor de “O homem elefante”, filme que relata a história de John Merrick, um homem monstruosamente deformado, cuja riqueza como ser humano se manteve inalterada.
Depois de recusar o convite feito por George Lucas para realizar o terceiro episódio da sua saga “A Guerra das Estrelas”, Lynch aceitou trabalhar na adaptação cinematográfica do livro de Frank Herbert, “Duna”. O filme foi um fracasso de bilheteira, apesar do fato de “Duna” ser hoje um dos filmes de ficção científica mais amados pelo público. Logo em seguida, Lynch realizou “Veludo azul”, filme que resulta de um projeto de longa data e que contou com a participação de grandes atores como Dennis Hopper e Isabella Rosselini.
Mais uma vez o mistério e o suspense. Lynch cria então “Twin Peaks”, série televisiva que se tornaria histórica pela inovação que representou em todos os níveis, pondo uma pequena comunidade norte-americana frente a um brutal assassinato de conseqüências sociais e humanas imprevisíveis. Subitamente Lynch vê-se elevado ao status de estrela de cinema devido a uma seqüência de críticas muito positivas, não só por parte da crítica norte-americana, mas também ao conseguir a tão almejada Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes com o filme “Coração selvagem”, um road movie alucinatório que conseguiu evitar a previsível vitória no Festival por parte do favorito “Cyrano de Bergerac”. Apesar dessa vitória, os mesmos críticos que tinham posto Lynch no Olimpo dos criadores cinematográficos, acabaram por “derrubá-lo”, criticando ferozmente “Coração selvagem” e “Twin Peaks”, que em 1991 acabou por ser extinta pelo canal ABC.
Depois de alguns anos dedicados à escrita e à fotografia, dos quais resultou o livro “Images”, Lynch finalmente voltou ao cinema com o enigmático “Estrada Perdida”, filme que o colocou mais uma vez no mapa do cinema moderno. Este “renascer” para o cinema culminou em 1999 com a estréia em Cannes do seu último filme “A História Real”, filme que surpreendeu a todos pelo aparente abandono dos temas mais obscuros, em favor de uma história simplista e humana. Para quem acreditava que Lynch havia abandonado o seu universo peculiar, eis que surge “Mullholland Drive”, nos moldes de “A Estrada Perdida” e “Veludo Azul”.
David Lynch, ainda com muito para oferecer à sétima arte, possui uma carreira invejável. Mesmo que suas histórias sejam de difícil compreensão em alguns momentos, vale lembrar que talvez seja esse o grande desafio que Lynch nos propõe a cada vez que assistimos a uma de suas obras. É neste fato que reside a verdadeira magia da cinematografia de um dos maiores gênios criadores da história do cinema.
Mulholland Drive: não entendo, não quero entender e tenho raiva de quem entende.
Filmografia
“Eraserhead”- 1977
O homem elefante (The elephant man, 1980)
Veludo azul (Blue velvet, 1987)
A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997)
A História Real (The Straigh Story, 1999)<
Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001)