Apesar da fama que temos pelo mundo, de que somos um país liberal, onde as pessoas andam com roupas diminutas, ou mesmo sem elas durante alguns dias do mês de fevereiro, o Brasil é um país MORALISTA – com todas as maiúsculas. Mas não moralista da boca para fora ou na frente das cameras de TV, quando parecemos o povo mais bem resolvido do mundo no quesito SEXO. É diferente. Defender o moralismo em público é um tabu. Pois, além de moralistas, somos aquele tipo de gente que, antes de tudo, se preocupa com o que vão dizer os vizinhos. E ser tachado de moralista pela vizinhança, na cabecinha hipócrita de nosso povinho, é pior do que ter um filho homossexual e uma filha promíscua. Por isso, em público, procuramos nos mostrar cosmopolitas e bem resolvidos.
Somos essencialmente MORALISTAS da porta de casa para dentro, e eternos curiosos sobre a vida alheia da porta para fora. Foi nesse programa de auditório da hipocrisia que é o Brasil, onde podemos acrescentar um machismo que já vem no código genético do povo, que o fotógrafo norte-americano Spencer Tunick deu continuidade ao polêmico trabalho de tirar fotos de pessoas nuas em cenários urbanos inusitados. Tunick esteve por aqui em abril deste ano para participar dos eventos da 25ª Bienal de São Paulo e fazer suas fotos in Brazil, terra do samba, futebol e das desinibidas do Grajaú, certo? Arrastou centenas de fotógrafos, cameras, curiosos e mais de mil voluntários dispostos a posar nus numa fria manhã de domingo no parque, no Ibirapuera. Por trás do lamento enrustido de moralistas e autoridades, Tunick clicou três fotos sem problemas, mesmo tendo a desagradável presença das cameras e microfones dos brilhantes “apresentadores-repórteres” ET do SBT, o mala-mor Otávio Mesquita e Wagner Sudaneli da Rede TV!. Esse último causou tumulto ao chegar nu e entrevistar as pessoas em local não autorizado pela produção.
Bom, o que ficou claro é que, além de muitos voluntários dispostos a aparecer, arrumar um trelelê ou simplesmente viver uma experiência nova (e as cuecas espalhadas pelo gramado do parque em maior número têm algum significado especial), o ensaio de Tunick arrastou para o Ibirapuera um enxame de cameras e uma horda de curiosos cheios de sono e críticas a fazer. No fundo, no fundo, com todos os moralismos, o brasileiro realmente acredita que, qualquer dia desses, um evento como esse possa virar uma enorme suruba transmitida ao vivo pela televisão. Eu também estou esperando.
Aparentemente ainda mais puritanos e moralistas do que os brasileiros, os norte-americanos foram os primeiros a serem enquadrados através da lente de Spencer Tunick. É o que mostra o documentário Naked States (2000), de Arlene Donnelly. O filme, que está sendo exibido pelo canal por assinatura HBO, acompanha o fotógrafo no início de carreira tocando um projeto muito peculiar: viajar pelos 50 estados americanos e tirar fotos de toda espécie de gente nua. Nova iorquino de nascença, Tunick começa a sua odisséia em Mahattan. Junta um grupo de voluntários dispostos a tirar roupa em outra fria manhã de domingo, só que dessa vez numa das quadras mais movimentadas do mundo: o Times Square. O cuidado para evitar os policiais é visível. Longe das movimentadas esquinas cheias de luminosos piscantes, Tunick reuniu cerca de 150 voluntários e conduziu-os, vestidos, para Times Square. Chegando ao local desejado, a cena é cômica. Os modelos de Tunick tiram as roupas rapidamente e correm com suas bundas brancas para o meio da rua. Todos prontos, Tunick começa a fazer suas imagens, um olho no visor e os ouvidos ligados nas sirenes dos carros de polícia, que não demoram a chegar.
O fotógrafo é preso e uma legenda do filme informa: “Essa é terceira vez que Tunick é preso por atentado ao pudor nas ruas de Nova Iorque”. Como acontece em sociedades moralistas e hipócritas como a norte-americana, apenas o fotógrafo, que estava vestido, foi preso.
Como se todos os peladões tivessem sido vítimas ingênuas da manipulação estética e ideológica e Tunick. Os policiais pareciam já conhecer o fotógrafo e o chamavam pelo nome com alguma intimidade. (No Brasil, só não prenderam o fotógrafo e todos os voluntários nus por dois simples motivos: primeiro, porque o que fazia-se ali era arte, e parte dos eventos da Bienal de SP (ah tá…se é arte pode, ainda bem!); segundo, Spencer Tunick é gringo. E artista gringo no Brasil tem imunidade para um monte de coisas (e só com essa pensata você conta toda a História do imperialismo e do complexo de inferioridade do brasileiro).
Novamente solto com o pagamento de fiança, mas réu de um processo público na justiça, o fotógrafo, desconhecido do público e virgem de galeria, compra uma van caindo aos pedaços e parte ao lado de sua namorada e assistente para continuar o projeto Naked States. A dificuldade inicial que Tunick encontra para convencer as pessoas a tirar a roupa revela um artista perseverante, com lábia afiada que, aos poucos, consegue adeptos com alguns bons argumentos: as fotos são feitas de manhã cedo; elas não serão vendidas a jornais e revistas; não haverá qualquer tipo de pornografia ou sensacionalismo associado a elas; e (a mais manjada) a motivação do trabalho é puramente artística. E é verdade.
Os objetivos do fotógrafo são estéticos e subjetivos. A quem tenta convencer, ele mostra fotos do seu trabalho, e acaba não sendo difícil encontrar alguém que tope uma experiência diferente e, porque não, muito válida. Os resultados são inesperados. Tunick contrasta cenários urbanos modernos e pessoas nuas sem qualquer traço cultural, só o corpo nu. Nas fotos, são proibidos brincos, colares, máscaras, fantasias, penteados ou qualquer gesto mais agressivo que comprometa o status de simples corpo nu posado em algum lugar. Ao lado de um monumento, numa pista de aeroporto ou à beira do Rio Hudson com o skyline de Manhattan ao fundo, os cenários são bem diferentes das tradicionais fotos de nu artístico, e muito mais interessantes. “Eu fotografo todos os tamanhos e formas de corpos – a beleza está na personalidade das pessoas.” Em suas instruções, Tunick pede braços abaixados, pernas nem muito abertas, nem muito fechadas, busca sempre a naturalidade e a dignidade de um ser humano nu, livre de defesas. O objetivo não é explorar o nu, mas sim o sentimento de intimidade que a nudez provoca nas pessoas, intimidade consigo mesmas, com as outras pessoas e com o ambiente. Aqui, o vulgar não é aquilo que é vil, mas aquilo que é acessível a todos. A nudez é acessível a todos, mas poucas vezes foi de forma tão bela e intimista quanto no trabalho de Tunick. Quando não é associada ao nascimento, nossos moralistas sempre submetem a nudez ao sexo, Spencer Tunick apenas propõe outros significados.
Naked States ainda é repleto de cenas e depoimentos que falam muito sobre os americanos e, porque não, também sobre o ser humano. O filme mostra a ascensão do artista, que começa a odisséia fotográfica reclamando que as galerias não lhe dão espaço e termina com uma exposição individual com fotos em tamanhos monumentais e matérias nas capas de todos os jornais e revistas de Nova Iorque. Naked States mostra o nascimento de um artista famoso com um trabalho polêmico. E mostra também: Tunick convencendo moradores de Fargo (aquela cidade do filme dos irmãos Coen), na Dakota do Norte, um dos estados mais caipiras e conservadores dos Estados Unidos, a tirarem as roupas para suas lentes; mostra o fotógrafo no Burning Man – festival anual que reúne gente doida no meio de um deserto na California para dançar, cantar e se drogar sem qualquer infra-estrutura de água, alimentação ou esgoto. (Nesse Burning Man, foi difícil para o fotógrafo fazer as imagens do jeito que queria. A maioria dos voluntários se apresentou cheia de adereços para as fotos: máscaras, fantasias, acessórios e tudo que você possa imaginar. Tunick teve que convencê-los a realmente se despirem para que a foto no meio do deserto saísse como queria.) O filme ainda acompanha o drama de alguns voluntários e sua relação com a nudez. São gordos, velhos, jovens, louras, feios e bonitos falando sobre motivações, traumas, tabus, preconceito e as descobertas individuais que a experiência de posar nu proporcionou. Fica também na memória as cenas de Spencer Tunick fazendo suas fotos numa praia de nudismo. É a única vez no filme em que o fotógrafo teve que tirar a roupa também. O ensaio é confuso. Tunick acaba revelando logo depois que não sentiu-se confortável para trabalhar e dar instruções completamente nu. Ainda criticou os nudistas, dizendo que eram difíceis de serem dirigidos: “Eles são vaidosos, queriam aparecer uns na frente dos outros, não aceitavam as instruções e não entendiam o que eu queria com aquela imagem, o que dificultava muito a concepção da foto”. Já dizia o ditado: “Em casa de ferreiro, espeto de pau”.
Naked States (EUA,2000, 80 minutos)
Dirigido por Arlene Donnelly