O ano de 1970 marcou mais um faroeste com Clint Eastwood, desta vez dirigido por Don Siegel: “Os Abutres Também Têm Fome”, cuja trilha inclui referências musicais à mula do título original em inglês. “Le Foto Proibite di una Signora per Bene”, mais um filme no filão dos “giallo”, contou com uma trilha inspirada que se baseava em dois belos temas principais e na voz de Edda, que interpretava o tema principal numa língua improvisada por ela própria, situada entre o Inglês e o Italiano.
Acima desses dois trabalhos, no entanto, destacava-se a música para um filme de Alberto Bevilacqua intitulado “La Califfa”, comRomy Schneider e Ugo Tognazzi nos papéis principais. A trilha, que repudiava a grandiloquência e tomava caminhos mais simples porém não menos certeiros, fez grande sucesso graças ao tema de abertura. Dois anos mais tarde, Morricone trabalharia novamente com Bevilacqua em “Questa Specie D’Amore”, outra trilha romântica considerada um dos grandes momentos do compositor.
O ano de 1971, para não fugir à regra, trouxe uma série de novas trilhas respeitáveis, bem como um ou outro deslize. “L’Istruttoria È Chiusa: Dimentichi”, do diretor Damiano Damiani, foi uma de suas primeiras incursões pela música concreta. Faziam parte da trilha sonora gritos, discursos políticos e outros sons difíceis de identificar. Já “A Classe Operária Vai ao Paraíso”, de Elio Petri, trazia ruídos de máquinas simbolizando de maneira um tanto óbvia a vida mecânica que levava o protagonista. Em “La Corta Notte delle Bambole di Vetro“, filme do diretor Aldo Lado que foi o precursor de uma série de nove colaborações, Edda interpretava a melancólica valsa principal, dando a entender que se tratava de uma história repleta de romance e nostalgia. Tremendo engano.
A história macabra serviu de pretexto para que Morricone explorasse sonoridades menos convencionais. Em algumas faixas, o pianista repetia insistentemente a mesma nota. Mais adiante, o compositor tira um novo coelho de sua cartola musical: utiliza apenas sons eletrônicos, percussão insistente e compassada e a respiração de Edda para criar um ambiente de paranóia. Edda inspira e expira profundamente. Depois geme de pavor. Jamais houve uma colaboração tão bizarra quanto essa. Também foi aquele o ano de “Maddalena”, de Jerry Kawalerowicz. A música, obra-prima inquestionável de Morricone, trazia duas melodias inolvidáveis:”Chi Mai”, depois reutilizada como tema em “The Life and Times of David Lloyd George” na televisão britânica, e “Come Maddalena”, uma peça longa (9 minutos) que contava com a voz de Edda, aqui de forma menos excêntrica, e o órgão de Bruno Nicolai.
A respeito dessa música, o crítico John Bender comentou: “Se as mulheres algum dia desaparecerem da face da Terra, nós homens ao menos encontraremos aqui, à guisa de consolo, uma surpreendente aproximação musical do dinamismo peculiar a esse sexo misterioso.” (1)
Ainda em 1971, Morricone musicou com grande sucesso o filme político de Giuliano Montaldo, “Sacco & Vanzetti”, usando um lúgubre solo de oboé como tema principal, somado a duas canções na voz de Joan Baez e sons eletrônicos que lembram a cadeira elétrica a qual os personagens principais viram-se condenados. Com essa trilha, o compositor conquistou de novo o prêmio Nastro d’Argento.
Na lista de diretores dos vinte e seis filmes em que Morricone trabalhou em 1972, vários nomes já conhecidos tornam a despontar: Pasolini (“Os Contos de Canterbury”), Mauro Bolognini (“Imputazione di Omicidio per uno Studente”), Sergio Corbucci (com quem Morricone fez uma série de faroestes) e Elio Petri (“La Proprietà non È più un Furto”).
Sua grande realização do ano talvez tenha sido “La Cosa Buffa” para o diretor Aldo Lado. Na trilha monotemática o compositor emprega com maestria o contraponto, uma técnica que ele domina. Submetendo o tema às mais diversas variações, Morricone garantia o vigor da música. Por vezes é apresentado em fragmentos; mais tarde, tocado no realejo; por fim, gloriosamente interpretado por (quem mais?) Edda.
No ano seguinte, mais colaborações com velhos amigos como Alberto de Martino, Vittorio di Sisti, Henri Verneuil, Mauro Bolognini, Aldo Lado e Sergio Sollima. Morricone também assina uma trilha que costuma citar entre suas favoritas até hoje: “Il Sorriso del Grande Tentatore”, filme de Damiano Damiani. A música só pode ser descrita como imprevisível e irônica. Inicia-se como um texto litúrgico, cantado em latim com deferência, e súbito degenera em uma canção de rock psicodélico, como se o coro da igreja fosse possuído por um demônio zombeteiro. Tal sacrilégio justifica-se pelo tema do filme, que envolve conflitos em um convento habitado por pessoas decididamente perturbadas. Chega a ser impossível explicar como um filme tão medíocre inspirou ao compositor uma obra criativa assim.
Talvez decadência seja um termo exagerado para designar o período que se seguiu, porém nota-se que a música de Morricone passou a sofrer estagnação a partir de um limite um tanto impreciso, em torno de 1974-75. Escrevendo incessantemente para o cinema há dez anos, o compositor começava a aparentar cansaço, retornando com frequência a estruturas já usadas e produzindo uma série de trilhas boas, mas poucas verdadeiramente notáveis, e mais fracassos do que de hábito.
Ao invés de trabalhar em “O Exorcista”, Morricone recebia material como “O Anticristo”, uma adaptação evidente e sem sutilezas do filme americano que fizera sucesso anos antes. Até mesmo seus parceiros representavam clones pálidos de originais brilhantes: em “Leonor”, ele trabalhou com Juan, filho de Luis Bunuel. Por mais que tentasse, ficava difícil abrilhantar tamanhas catástrofes cinematográficas. Ainda assim, vez ou outra Morricone reunia energias e escrevia um tema marcante como o de “Spasmo”, grotesco filme de Umberto Lenzi. Dentre as boas trilhas desse período, destacam-se “Allonsanfan”, partitura eclética para o filme dos irmãos Taviani, e “Moisés”, música para a série de TV com Burt Lancaster que despertou um ímpeto criativo em Morricone.
A questão da reciclagem de material antigo é controversa. Morricone, mirando-se no exemplo de compositores ilustres que o precederam, como Haendel, toma motivos e temas inteiros de obras anteriores, desenvolve e os converte em novas trilhas. Ele parece sentir que as idéias antigas ainda não foram esgotadas e se entrega sem pudor à tarefa de as reutilizar.
Ninguém contesta, entretanto, o fato de que quando se oferecia um grande filme a Morricone, este respondia com uma trilha à altura. “Novecento”, que Bernardo Bertolucci dirigiu em 1976, narrava uma história épica envolvendo o conflito entre o comunismo e o fascismo na Itália, com algumas imagens belíssimas e referências a Verdi, um dos compositores preferidos de Morricone. O resultado foi uma de suas partituras mais românticas e arrebatadoras. O diretor ficou tão satisfeito que comentou: “Ennio, sem se dar conta, escreveu dois ou três possíveis hinos nacionais italianos”. (2)
No mesmo ano, Morricone assinou outra trilha bastante lírica para o último filme do diretor Valerio Zurlini, “O Deserto dos Tártaros”, contando com o piano bem temperado de Alberto Pomeranz.
Mas o pior estava por vir. Em 1977, o compositor participou de dez projetos, entre filmes e séries de TV (“Drammi Goticci”), dos quais apenas três contam com música razoável: “Il Gatto”, mistura de comédia e filme policial produzida por Sergio Leone, aproxima-se demais (intencionalmente?) da trilha que ele escrevera para “Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”, com momentos de genialidade. Começava, porém, a preponderar uma sensibilidade pop que, por mais que se aplique ao filme, faz com que a música torne-se horrivelmente datada e rasteira. A utilização da voz de Edda já se tornara um clichê, mas o compositor parecia não encontrar alternativas e continuava a se valer da mesma.
“Il Prefetto di Ferro” e “Il Mostro” eram trilhas competentes, embora apresentassem material reutilizado.
O fatídico ano de 1977 foi também aquele em que Morricone iniciou sua instável colaboração com o cinema americano da maneira menos auspiciosa possível: escreveu a partitura requentada para a bomba cinematográfica de John Boorman chamada “Exorcista II: O Herege”. Morricone utiliza ritmos e sonoridades africanas para sublinhar a presença do demônio (truque que repetiria em “Holocaust 2000”, do mesmo ano), mas a música jamais diz a que veio, assim como o filme. A esse projeto seguiu-se “Orca, a Baleia Assassina”, de Michael Anderson, uma risível cópia de “Tubarão” que merece entrar para a galeria dos piores filmes de todos os tempos. Morricone reconhece que a trilha é “apenas mediana” (3), uma vez que o tema principal compensa a mesmice do resto.
Em 1978 Morricone surpreendeu ao conquistar uma indicação ao Oscar por seu trabalho em “Cinzas do Paraíso”, de Terrence Malick. A bem da verdade, a trilha complementa adequadamente o filme, porém deve muito a “O Carnaval dos Animais” de Saint-Saens. Mas a expectativa foi vã, pois a famosa estatueta acabou nas mãos de Giorgio Moroder pela trilha de “O Expresso da Meia-Noite”, um forte indício de que músicas com um toque moderno tendiam a fazer sucesso e eclipsar trabalhos mais refinados.
A seguir veio “A Gaiola das Loucas”, de Edouard Molinaro. Sua trilha conta com um tema principal apropriadamente alegre e dançante, porém o resto deixa a desejar. Ele assinou a música de “Così Come Sei”, de Alberto Lattuada, contendo pelo menos duas boas melodias desenvolvidas de uma forma preguiçosa e lenta, como se o próprio compositor estivesse com a paciência esgotada de tanto escrever a mesma coisa. Ainda assim, a performance do habitual colaborador Oscar Valdambrini (trompete e flugelhorn) assegurava um toque superior ao produto final. Finalmente, a música de “L’Umanoide”, de Aldo Lado, denotava que Morricone ainda tinha muito a dizer. Uma pena, entretanto, que seu trabalho acabasse atrelado a filmes que não o mereciam, como esse insignificante clone de “Guerra nas Estrelas”.
Com a chegada do fim da década, Morricone atingiu o fundo do poço. Suas trilhas de 1979-80 eram quase todas requentadas, incluindo alguns sintetizadores horrorosos para garantir aquele lado pop tão característico da época.
Mesmo trabalhos bastante comentados como “La Banquiere” não se sustentam quando comparados aos anteriores. E ninguém consegue explicar o que o compositor estava fazendo em “A Ilha” ou “Windows”, dois filmes assustadores de tão ruins, pois nunca se imaginaria que ele deixasse de musicar filmes italianos medíocres para trabalhar em filmes americanos ainda piores. Do período, pouco se salva. “Il Prato”, sua segunda e última colaboração com os irmãos Taviani, é música de qualidade, enriquecida pela flauta de Marianne Eckstein, e merecidamente foi agraciada pelos críticos da indústria fonográfica italiana. Já “O Bandido dos Olhos Azuis” beneficia-se de uma trilha jazzística excitante.
No entanto, no quadro geral, tinha-se a impressão de que Morricone era um compositor decadente, destinado a sobreviver escorado em seus antigos sucessos. Era como se sua carreira tivesse terminado precocemente e ele se arrastasse escrevendo pastiches de obras anteriores. A situação não mudaria tão cedo. Somente lá pela metade da década seguinte ele reinventaria sua música para retornar em grande estilo.
(2) Em documentário sobre o compositor, dirigido por David Thompson e exibido na BBC em 1995.
(3) Em entrevista a Loris Curci e Claudio Fuiano em Fangoria #135 de agosto de 1994. Por Daniel Azevedo